terça-feira, 5 de abril de 2011

Você sempre diz que eu não te conheço. Tens razão. Já dizia meu finado pai: Coração dos outros é terra que ninguém anda. E o seu coração é uma terra toda cercada de arame farpado, cerca elétrica, câmeras de segurança e alguns pitbuls na entrada. Ainda tem aquela caveirinha de perigo no portão. Mesmo assim, eu não dei um pingo de atenção a todo esse aviso de segurança: Cortei o arame farpado, desliguei a cerca elétrica , as câmeras de segurança e dei picanha aos pitbuls. E entrei. Não em todas as partes. Confesso que algumas dão tanto medo que nem seria necessário vigilância... Na primeira parte, encontrei muita bagunça. Muitas latas de cerveja, traços de vulgaridade. Mulheres fáceis. Um pano de chão daquilo que vc chama de time. Fui eu quem te dei, inclusive. Um pandeiro, um DVD do Exalta. Pirata. Essa parte superficial, todos conhecem. Essa é a que você demonstra para o mundo. Essa questão que você faz de ostentar que você não presta. Que você só encontra felicidade no supérfluo. No efêmero. Momentâneo. Ri de tudo isso. Dou risada da sua bebedeira, da sua promiscuidade, do seu corintianismo e do seu pagode. Sua casca, sua embalagem. Ainda bem que não sou alguém de se impressionar por embalagens. (Claro que quando vou comprar ervilhas, coisa que adoro, prefiro as embalagens tetra-pack do que as em lata, por serem mais fáceis de abrir. Você sabe que sou desastrada, podem acontecer danos irreversíveis caso eu tente usar um abridor de latas). Sim, você não é o montro que eu sempre digo que você é. Depois de chutar algumas latinhas, encontro uma porta trancada por fora com trincos. Creio que você se preocupou tanto com a segurança externa, que com as áreas que você realmente precisava se reforçar, olha só: Apenas um trinco. Abri a porta e ouvi um barulho. Parecia uma platéia. Uma platéia de circo. E vi uma menininha que não tinha teus olhos esmeraldos, mas tinha sua cara de cachorro caído da mudança. Ela olhava pro picadeiro com os mesmos olhos que você faz quando eu digo: Cuidado, aquilo que você faz com a filha dos outros um dia vão fazer com a sua. Era a sua para sempre inocente Mi. Quando ela fizer 18, vou arrastá-la pela noite paulistana e você verá o que é bom para tosse. Seu xarope. Continuando. Andando mais um pouco, ouvi aquelas musiquinhas de ninar. Uma porta encostada. Vi um bebê branquinho e bochechudo, de olhos cor de mel. Ahá, a praga que te joguei deu certo: Não naceste de olhos esmeraldos. Bebê de um ano de idade. A melhor fase. Não fala, só aqueles ruídos estranhos, engatinha, anda e tropeça. Ria muito. Nem parece que tem seu sangue. Coisinha simpática e sorridente. Não lembra nenhum pouco seu mal humor. Tava vestido num mini-pano de chão. Peguei o bebê no colo. Como conhecedora de crianças nessa faixa-etária, falei: Meu fio, tão novinho e já enveredando por caminhos errados? Ainda tens tempo. Conheces um time que já foi 6 vezes campeão nacional, 3 vezes campeão do continente e três vezes campeão do mundo? Conheces o maior goleiro-artilheiro do mundo? Pense grande. Seja ambicioso! Não fique nesse mimimi de ser sofredor. Desde quando sofrer virou opção? Os únicos sofredores por opção que eu conheço são esses que torcem por um clube que não faz o principal: Ganhar. Perder faz parte da vida, mas escolher perder é ausência de neurônios. Você ainda é um bebê. Ainda tem jeito. Quando você for maiorzinho, te mostro um famoso centésimo gol e você vai me entender. O meu interlocutor fez cara de quem entendeu tudo. Eu pediria DNA. Tem algo estranho nesse garoto. Ele me parece ser esperto. Continuei. Afinal, pelo sacrifício que fiz para adentrar esse coração que ninguém anda, preciso entrar em todos os lugares que me forem permitidos. Ouvi um barulho muito forte. Barulho de máquinas trabalhando. Porra, precisa de protetor auricular até para se entrar em coração? Vi muitas máquinas, muitas ferramentas e um pedaço de dedo. Sim, a piadinha infame que só falta você se tornar presidente. Claro, imagina o meu status: Eu já peguei o presidente. A primeira-dama (seja ela quem for) ficaria horrorizada. Caso fosse eu mesma, só daria risadas. Coisas que só eu entendo de você... Apesar de não saber quem você é. Depois de sair da sessão barulhenta, vi aqueles adesivinhos de família em uma janela: 3 meninos e duas meninas. Você era o maior e cuidava de todos os outros. Engraçado ver esses adesivos de família sem o pai e sem a mãe. Abri a janela. Não dizem que se num lugar não tem portas, pode-se entrar pelas janelas? Entrei pela janela num quarto lindo. Cama redonda. Espelos no teto. Pétalas de rosas espalhadas. Hum, acho que foi a única parte dessa andança que me parecia familiar. Não havia sinal de promiscuidade, e sim de entrega. Um perfume, um par de brincos de argola com ganchinhos roxo. Uma calcinha aos avessos e um sutiã no chão. Sutiã costas nadador, aquele que vocedemora um século para abrir... (isso quando não perde a paciência e arranca assim mesmo). Chaves de moto e dois capacetes sobre a mesa. Uma hidromassagem cheia com a água quente. Um rádio ligado naquela estação da cidade do meu amigo Daniel que só toca pagodes. Era de manhã, e só tocava aqueles pagodes antigos, anos 90. Tinham duas pessoas na hidromassagem. Foi a primeira vez que me vi fora de mim. Olha só quem eu encontrei no seu coração: Eu mesma. Grata surpresa. Você só falava e eu só ouvia. Isso é atípico. Um termômetro de que você não está bem, apesar da performance maravilhosa de sempre. Até que uma canção adentrou o ambiente de pós-coito... ♪♫Descobri que te amo demais...Descobri em você minha paz... Descobri sem querer a vida... Verdade...♪♫ Você me abraçou. Forte. Quer dizer, eu que estava na hidro. Eu de fora, via tudo e entendi tudo. Eu de fora vi uma senhora. Eu de dentro te abraçava forte. Ficamos a música inteira assim. Eu de fora reconheci quem era aquela senhora. Olha de onde vinham os olhos esmeraldos... Tristes, como os seus. Ela olhou para mim e pediu para eu cuidasse de você. Perguntei: Como?. Você conhece bem o filho difícíl que... E ela sumiu. Eu devia ter respeitado as placas, as cercas, os pitbuls... Mas o desafio é algo que me move. Olha só onde fui me envolver. Agora era tarde. Eu tinha chegado no lugar jamais dantes adentrado: o centro do seu coração. Como que eu faria para sair de lá? Eu continuava com você na outra cena. Dispensa detalhes. Olhei e ri. Vendo do lado de fora, é engraçado. Mas preciso sair. Pulei a janela e deixei nós dois naquele quarto, oras, nisso a gente faz uma parceria incrível, temos que admitir. Alguma afinidade tínhamos que ter. Passei novamente por aqueles lugares até chegar na entrada, lembra? As latas vazias de cerveja no chão tinham diminuído. Já era um começo. Agora eu preciso encontrar você. Quero que você me diga de novo: Você não me conhece, você não sabe quem eu sou. E lhe entregarei essa história em mãos. Tire suas próprias conclusões.

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